Quem matar um ser humano [...] terá matado a humanidade inteira. Quem salvar uma vida humana terá salvo toda a humanidade. (ALCORÃO, 5:32)
“Maomé deve morrer” era a ordem. Mas não era simples matar um político em ascendência. Para evitar que a culpa recaísse sobre um assassino específico, e dificultar retaliações, eles bolaram um crime perfeito: cada um dos líderes da cidade deveria designar “um soldado forte e bem-nascido” de seu clã. O grupo invadiria a casa de Maomé no meio da madrugada, e cada um desferiria sua própria punhalada. Todos matariam o profeta, diluindo a culpa entre os membros do consórcio de assassinos.
Não deu certo, claro, ou este texto não estaria sendo escrito, pois sem a religião que ele criou, o mundo teria sido um lugar bem diferente. E até bem pior, como vamos ver mais adiante. Por outro lado, o que motivou este texto foi a violência dos extremistas islâmicos, uma minoria estridente que comete crimes em nome de sua religião, sem saber que outro grande delito que está perpetrando é contra o próprio islamismo e, mais ainda, contra a imagem de Maomé, um homem que trabalhou pela civilização, não pela barbárie. Vamos conhecê-lo melhor, a partir de agora.
Em algum momento nunca registado da história, os árabes colocaram muros em volta dessa pedra negra, cobriram e a casinha foi virando um santuário, a Caaba (o Cubo). Junto da pedra colocaram 360 deuses, na forma de estatuetas. Um para cada dia do ano, que eles acreditavam ter 360 dias. O ritual ali era dar sete voltinhas em torno da Caaba, provavelmente porque esse é o número de dias de cada fase da Lua. A Lua era Hubal, uma divindade que ajudava os humanos a prever o futuro; Vênus, o planeta, era Uzza, a deusa do amor; acima de todos, sentava-se um deus tão poderoso que nem tinha nome, conhecido apenas como “o deus”: al-llah. Assim, do mesmo jeito que “vossa mercê” virou “você”, al-llah virou “Allah”.
E Allah também era Javé dos judeus, que tinham escrito a Bíblia mil anos antes, que que já era considerada o texto mais conhecido do mundo. A ideia central ali era que Javé, o Deus do “d” maiúsculo, havia criado o mundo e feito uma aliança com um homem chamado Abraão, o patriota dos judeus. Graças à forte presença de comunidades judaicas na Arábia, essa ideia estava tão impregnada ali que os próprios árabes se viam como um povo quase bíblico, acreditando que também eram descendentes de Abraão, o homem que falava com Deus. A diferença é que os judeus descenderiam de Isaac, o filho do profeta, enquanto que os árabes viriam Ismael, filho primogênito que Abraão teve com a escrava da família. Fazia sentido, juma vez que a Bíblia registrava que Ismael tenha ido morar nas bandas da Arábia, ainda que não dê mais detalhes além de dizer que ele “se tornou um bom atirador de flechas e arranjou uma mulher egípcia.”
Só faltou combinar com os árabes que Javé era o único deus. Na cabeça deles, o deus de Abraão convivia com a deusa do amor, o deus da lua, a deusa do destino... E atendia pelo nome de “o deus” (Allah). A verdade é que cabia de tudo na mente do árabe típico daqueles tempos, da mesma forma como cabe na cabeça do brasileiro típico dos tempos atuais, que sincretiza catolicismo com umbanda e espiritismo sem problema nenhum. Havia até quem fosse à Caaba prestar culto a Jesus Cristo, considerado uma divindade que vinha ganhando terreno naquele panteão. Em suma, era um tabule de crenças. E foi em meio a esse carnaval religioso que nasceria Maomé, o filho de Abdallah com dona Amina.
Mas homem, você sabe como é. Abdallah cruzou com a estranha no dia seguinte e perguntou se o convite ainda estava de pé. Não estava. Porque mulher, você sabe como é: “Ontem você tinha um brilho os olhos” — ela disse — “E hoje não tem mais. Não quero.”
O tal brilho não era uma figura de linguagem. Segundo a tradição islâmica, de onde vem essa história, os olhos de Abdullah realmente emitiam luz. E por um motivo claro: naquela noite, ele e Amina conceberiam o embrião de Maomé. O brilho era uma manifestação da semente do Profeta, que estava prestes a sair do pai e ser plantada no útero de sua mãe. Claro que esse episódio da literatura islâmica é provavelmente tão factual quanto a história dos Reis Magos da literatura cristã, uma lenda composta para dar um caráter sobrenatural ao nascimento de Maomé, do mesmo jeito que a historinha da Estrela de Belém faz do parto de Jesus um acontecimento transcendente. Com ou sem luz nos olhos, o fato é que Abdallah e Amina foram por pouco tempo os pais de Maomé.
O pai nem viu o filho nascer. Morreu enquanto Amina ainda estava grávida. O casal já vivia apertado. Os bens de Abdallah somavam cinco camelos e algumas ovelhas — o que fazia dele um membro da “classe média baixa”, caso existisse um IBGE em Meca. Agora, com ele morto, as perspectivas para Amina eram trágicas. Mas ela segurou a barra. Teve o filho sem problemas e propiciou uma infância saudável ao menino, com direito até a um “intercâmbio” com uma família de beduínos para aprender cedo as agruras do deserto — coisa que toda criança árabe tinha de fazer na época para “crescer forte”. Mas Amina não teve tanto tempo para curtir o filho: morreu antes que ele completasse 7 anos.
Os dentes de leite do garoto mal tinham caído e ele já era órfão de pai e de mãe. Então foi morar com o avô, que também morreria em seguida. Agora Maomé tinha 8 anos e um destino: virar escravo. Esse era o destino da maior parte dos órfãos da época. Sem uma família para ajudar, a única saída era trabalhar em troca de (pouca) comida pelo resto das vida. Mas Maomé escapou dessa sina graças a um tio, Abu Talib, que era irmão do seu pai Abdullah. O homem teve pena do sobrinho e decidiu adotá-lo. Finalmente, o garoto ganhava uma família completa.
Abu Talib era um xeique, um chefe de clã. Só para situar: estamos na Arábia pré-islâmica, uma terra sem rei, onde o que valia era a lei tribal. O xeique seria o cacique, mas não mandava sozinho. Para cuidar dos cultos religiosos, havia o kahin, sujeito que cuidava dos cultos, servindo de porta voz para os deuses da tribo, que gostavam de falar em rimas, já que recitar poesias nas celebrações era a especialidade dos kahins. No Poder Judiciário, tinha o hakam, um juiz de pequenas causas. O trabalho do hakam, aliás, não era dos mais complicados, porque a ética que reinava ali era a do olho por olho — a lei da retribuição. Quebrou o nariz de alguém? Seus dias de simetria facial acabaram. Matou? Morreu.
Mas esse sistema tribal estava entrando em crise. Àquela altura, a vida nômade, com tribos de pastores vagando em busca de pasto e só se cruzando de vez em quando, estava com os dias contados. O comércio já era forte o bastante para sustentar centros urbanos. O normal agora era várias tribos ocuparem a mesma cidade. O problema é que as leis de cada tribo só valiam dentro de cada tribo: se você matasse alguém de fora, problema do morto. Era como se um morador de Ipanema tivesse carta branca para quebrar o nariz dos outros do Leblon.
Não teria como dar certo. O único caminho viável foi a formação de megatribos, que iam unindo vários clãs via casamentos arranjados, que iriam providenciavam os desejados laços de sangue. Depois de algumas décadas, vinha como resultado a tal megatribo, que acabava subjugava as menores: podiam quebrar o nariz dos outros à vontade, sem medo de punição.
A megatribo formada em Meca recebeu o nome de “Quraysh”, controlando o comércio e as finanças da cidade. Os peregrinos da Caaba, por exemplo, eram uma fonte de renda garantida para os mecanos, propiciando feiras e mercados vibrantes em volta do santuário. Mas, se você quisesse fazer parte da festa, abrindo uma barraquinha numa dessas feiras e mercados, teria que pagar impostos gordos para os líderes dos Quraysh.
Isso concentrava a renda. Se você precisasse de dinheiro para abrir sua barraquinha, teria que pedir emprestado para os próprios Quraysh, que cobravam juros extorsivos. Não porque os Quraysh fossem perversos, ou burros, pois juros altos demais causavam inadimplência, um mau negócio para o credor. Na verdade, eles cobravam juro de agiota porque, quanto mais calotes acontecessem, melhor. Explicamos: A garantia mais comum da época para casos de calote era muito vantajosa para o credor: eram pessoas. Você pedia um empréstimo e deixava um filho como garantia, ou você mesmo. Se você não pagasse, o credor ganhava um escravo. Num tempo sem máquinas, em que o trabalho braçal valiam bem mais do que hoje, ganhar escravos valia mais a pena do que receber de volta os valores emprestados. E, se a garantia fosse uma esposa ou uma filha, melhor ainda, pois ela acabaria engrossando o harém do credor.
Foi nesse cenário que Maomé cresceu. Seu tio Abu Talib, além de Xeique e bem relacionado com os Quraysh, era um exportador, dono de caravanas de camelos que transportavam alimentos, especiarias e objetos preciosos deserto adentro. Ainda criança, Maomé começou a participar dessas viagens, vindo a conhecer as comunidades cristãs e judaicas bem mais a fundo do que se tivesse passado a vida em Meca. O fato de ele ter se inteirado bem sobre as duas religiões monoteístas ajudou muito lá na frente, quando ele criaria uma terceira comunidade religiosa. Mas isso talvez nunca tivesse acontecido se Maomé também não tivesse cruzado o caminho de uma certa mulher, 15 anos mais velha que ele. Foi a mulher que viria a dominar o seu coração e que salvaria sua mente.
Nessa época, ele teve a sorte de ser contratado por alguém bem mais rico do que seu tio, alguém poderoso, respeitado e que, contra todas as normas sociais da época, cometia o disparate de não ser homem: Khadija. Num tempo em que mulher era propriedade, e nem podia herdar bens na morte de seu marido, Khadija era uma mulher emancipada. Era uma self-made woman de 40 anos, dona de caravanas extremamente lucrativas, e que, mesmo não sendo mais nenhuma menininha, estava entre as mulheres mais cobiçadas da cidade.
Khadija estava precisando de alguém que chefiasse uma caravana para a Síria, que ficava mil quilômetros ao norte de Meca. Como tinha ouvido falar muito bem de Maomé, ela convidou o rapaz e isso se transformou numa aposta vencedora: Maomé voltou da Síria com o dobro dos lucros que ela esperava. Foi paixão à segunda vista: ela ficou tão encantada que pediu o rapaz em casamento. Consta que ele não pensou duas vezes.
Agora Maomé estava por cima da carne-seca. Ao assumir o controle das caravanas de Khadija, finalmente conseguiu ter seu próprio (e grande) negócio. Virou um comerciante reverenciado até pela elite. Nessa época, seu melhor amigo passou a ser o próspero Abu Bakr, um Quraysh, também dono de caravanas. E Maomé ganhou a honra de recolocar a Pedra Negra na Caaba, depois de uma reforma que os líderes da cidade tinham feito no santuário.
Mas ele não se sentia confortável com a situação. Se por um lado ele lucrava com o sistema de Meca, já que tinha se tornado um comerciante próspero, por outro, ele simplesmente não enfolia a ditadura administrada pelos Qurayshs. Os textos islâmicos sobre sua vida começaram a ser escritos enquanto ele estava vivo, reiterando que Maomé não suportava ver tanta gente se tornando escrava por não conseguir pagar suas dívidas. Ele também achava absurda a ideia de a elite de Meca ser imune à lei da retribuição. Mas não protestava. E ainda tinha um comportamento contraditório: apesar de fazer doações frequentes aos mais pobres e ser contra o escravagismo, tinha seu próprio escravo, que era chamado de Zayd.
Além das doações, outra coisa que ele fazia para aplacar a consciência era sair para meditar sozinho nas montanhas em volta da cidade. E foi num desses retiros, quando já tinha 40 anos, que Maomé teve a maior de todas as suas experiências, segundo a liturgia islâmica. Sentado numa caverna para meditar, ele ouviu uma voz, que lhe surgiu na cabeça, uma voz autoritária, que dizia: “Recita!” Ele perguntou: “Recitar o quê?” A voz voltou a lhe ordenar: “Recita!” Então Maomé entrou numa espécie de transe e sentiu as palavras fluírem de sua boca, passando a recitar, mesmo sem saber o que estava recitando. “Recita, em nome do seu Senhor que criou/ Criou a humanidade a partir de um coágulo de sangue/ Recita, que seu Senhor é generoso/ Aquele que ensinou pela escrita/ Ensinou à humanidade o que ela não sabia.”
Na verdade, o texto não era duro e seco como mostra a tradução aqui. Em árabe, essas palavras são versos gostosos de ouvir, feitos para cantar, já que têm uma métrica sofisticada e rimam. Os dois primeiros, por exemplo, fecham com palavras terminadas em “laq” (pronuncia-se “láco”). Os três últimos, com palavras que acabam em “am”. Poesia, em suma. Ao estilo dos Kahins.
Essa foi a primeira das várias recitações que Maomé faria nos 23 anos seguintes e que dariam origem ao livro Alcorão, cuja tradução literal é “A Recitação”. Mas, segundo a tradição islâmica, não foi fácil para eles. Nessa primeira experiência, Maomé ficou atordoado ao ver os versos saírem pela sua boca sem que ele soubesse o que estava acontecendo. Ele suava muito e tremia, quando saiu da caverna. Foi direto para sua casa e só relaxou depois, já nos braços da esposa. “Khadija”, — ele suspirou calmamente. “Acho que fiquei louco.” Hoje, 1,6 bilhões de pessoas discordam dessa afirmação. Mas naquele dia, bastava Khadija.
Ela confortou o marido. Depois, para que Maomé conseguisse entender melhor o que lhe tinha acontecido na caverna, Khadija decidiu levá-lo à casa de um primo cristão chamado Waraga, homem versado nas escrituras judaicas e nos Evangelhos. E o diagnóstico de Waraqa foi imediato: aquelas eram palavras de Deus. O Criador estava se manifestando pela boca de Maomé, transformando-o em Seu mensageiro, em Seu Profeta. E as mensagens tinham um intuito: deixar claro para o povo árabe que só existia um Deus (Allah) e que todas as outras divindades seriam ilusórias.
Dali em diante, Maomé passaria a pregar o monoteísmo vorazmente. Ia até a Caaba e discursava para os politeístas. Além de vociferar que os deuses deles não existiam, deixava claro que ele próprio era uma parte da história entre Deus e os homens. “Allah”, ele dizia, “contou com vários profetas: Sadão, Noé, Abraão, Moisés, Davi, Jesus. E agora tinha mais um, ali, diante deles: Maomé.”
Na prática, a religião que Maomé criava naquele momento era um reflexo do próprio caldo cultural de Meca: tinha um pouco de cristianismo, muito judaísmo e um belo tempero árabe, com a poesia que remetia à cultura ancestral dos Kahin. Só que Maomé tinha muito mais do que poesia para entregar, Foi aí que começaram os problemas. E sua ascensão.
Deus escolheu Adão, Noé e a família de Abraão [...] acima de todas Suas criaturas.” (Alcorão 3:33)
"A Moisés, nós demos o livro, a depois dele enviamos uma sucessão de Mensageiros.” (Alcorão 2:87)
Mesmo com esse discurso, Maomé angariou seguidores entre os homens ricos de Meca. Provavelmente pela beleza das recitações, muitos realmente o viam como um novo Abraão, um novo Moisés. A começar por seu amigo Abu Bakr, o comerciante Quraysh. Seu primeiro ato como seguidor de Maomé, inclusive, foi gastar uma fortuna comprando escravos de seus colegas comerciantes, de modo a libertá-los.
Some-se a tudo isso o fato de que a própria mensagem monoteísta de Maomé também tinha um potencial destrutivo: se aquele homem continuasse convencendo gente na Caaba de que os deuses ali dentro eram falsos, os peregrinos que se convencessem poderiam não voltar mais. Péssimo negócio para os Quraysh, que controlavam o comércio em torno do santuário. Estava chegando a hora de tomar-se uma providência contra o recitador.
Mas não seria fácil, porque o número de seguidores dele crescia muito. No começo, eram só Abu Bakr, Zayd (o seu escravo alforriado), Khadija, claro, e o menino Ali, de 13 anos, um primo de Maomé. Mas agora, ele somava centenas de fiéis e seu tio Abu Talib era próximo demais dos Quraysh. Isso ajudava a manter as espadas deles longe do pescoço de Maomé. Mas não por muito tempo.
Quando Maomé chegou aos 50 anos, no ano 620, seu tio Abu Talib morreu, deixando o caminho mais livre para os Quraysh. E pior ainda: Khadija também faleceu, aos 65 anos. Sem suas duas maiores referências na vida, e ciente de que o pior se avizinhava, Maomé começou a tecer um plano para deixar Meca, mas sem largar seus seguidores. Líderes de outra cidade, Medina, tinham convidado Maomé para servir lá como haran, julgando uma disputa interna entre os clãs locais. O Profeta, então, orientou seus seguidores a se mudar para Medina, que ficava a 300 quilômetros ao norte, sem alarde, para não chamar a atenção dos seus perseguidores. Mas logo que os Quraysh perceberam a movimentação, decidiram agir. O temor agora era que Maomé estivesse formando um exército.
Foi aí que, em setembro de 622, decidiram matá-lo, lançando mão daqueles soldados “fortes e bem nascidos”. Mas os cães de aluguel dos Quraysh tiveram uma surpresa. Quando arrombaram a casa do Profeta, quem estava lá dormindo era seu primo Ali. Maomé tinha acabado de fugir para Medina, junto com Abu Bakr. O primo Ali logo mais se juntaria aos dois em Medina.
Esse dia da fuga se tornou tão importante para a história do islamismo que o ano de 622 ficou marcado para sempre como o Ano 1 da nova religião, o Ano 1 d.H. (depois de Héjira, “Fuga”, em árabe). E isso não aconteceria porque o Profeta escapou da morte, mas porque foi em Medina que Maomé fez sua maior obra: criar a sua própria civilização.
Maomé agora era xeique, pois longe de Meca, seus seguidores formavam uma tribo de fato, que recebeu o nome de “Ummah” (comunidade). Essa tribo não foi unida por laços de sangue, mas por uma ideologia que Maomé logo tiraria do mundo das ideias.
Uma de suas primeiras medidas no campo das coisas práticas foi como se hoje baixasse a Taxa Selic. O Profeta achava que os juros extorsivos estavam no cerne dos problemas de Meca. Foi quando criou uma espécie de BNDES em Medina: os membros da Ummah concediam empréstimo a juro zero para outros “afiliados”.
Outro problema que ele via em Meca era o monopólio dos Quraysh no comércio. Em Medina, não era diferente, pois havia ali uma tribo que também dominava o comércio, chamada “Banu Qaynuca”, de origem judaica. Ninguém podia vender nada em Medina sem pagar uma taxa a eles.
Maomé acabou com tudo isso. Não foi com violência, mas criando uma feira concorrente, que não cobrava taxa nenhuma. Nisso, ele quebrou o monopólio e forçou uma baixada nos preços. Era um Capitalismo de raiz. Era tanto de raiz, que a Ummah abastecia seus mercados emboscando caravanas nos arredores de Meca.
Os saques também alimentavam outra novidade: uma espécie de Bolsa Família. Todo membro da Ummah deveria pagar um imposto de acordo com suas posses, chamado de “zakat”, que significa “purificação”. O dinheiro arrecadado ia para seguidores mais pobres, que nem tinham como pagar imposto nenhum. Assim, esse imposto tinha um sentido religioso: os mais ricos “purificavam-se” ao doar sistematicamente uma porcentagem dos seus ganhos. Mas Vale lembrar: a religião era tão intrincada nessa época, como todo o resto da vida social que nem havia uma palavra para “religião”.
“Os anjos disseram: Maria, Deus te escolheu e te purificou. Ele escolheu você entre todas as mulheres do seu tempo.” (Alcorão, 3:42)
Outra mudança importante foi no campo dos direitos das mulheres. Maomé tinha se tornado polígamo em Medina. Como qualquer xeique da época, tinha várias esposas e concubinas. Mas era natural que, como viúvo de uma mulher poderosa, ele também entendesse que mulheres não eram camelos. Então, ele concedeu um direito importantíssimo às mulheres da Ummah: elas poderiam herdar propriedades, pela primeira vez na história das Arábias. Ele também proibiu que maridos se apropriassem dos dotes de casamento, pagos pelo pai da noiva, no ato do casamento. O dinheiro deveria ser mantido como uma poupança exclusiva da mulher, funcionando como um seguro, em caso de divórcio.
Resumindo: se Maomé ressuscitasse hoje, deveria ser chamado para dar palestras sobre gestão pública. Seu pacote de reformas deu tão certo que vários habitantes de Medina entraram para a Ummah, o que era bastante facilitado: bastava aceitar que só havia um deus e que Maomé era seu profeta, estar disposto a pagar o zakat e pronto: você se tornava membro das tribo do Profeta, tribo que, conforme foi ganhando mais membros, começou a ser conhecida por outro nome: Islã (“subordinar-se a Deus”). E seus membros passariam a ser chamados de “muçulmanos” (“aqueles que se renderam a Deus”).
Mas quem não tinha se rendido a nada eram os Quraysh, lá em Meca. Eles não tinham esquecido a ameaça que Maomé representava. Ainda queriam matá-lo de todo jeito.
A primeira batalha entre os Quraysh e a Ummah aconteceu dois anos depois da Héjida, em 624. Foi num daqueles roubos de caravana. O pessoal de Meca soube, via espiões infiltrados em Medina, que os muçulmanos iriam saquear uma caravana específica, que vinha da Palestina. Então colocaram um exército de mil homens para protegê-la. Maomé chegou com 300 homens. Deveria ser o seu fim. Não foi. Talvez por excesso de confiança dos Quraysh, talvez por muito mais excesso de confiança dos muçulmanos, o fato é que Maomé venceu. Dali para a frente, seguiram-se anos de batalha.
Entre uma luta e outra, Maomé continuava tendo seus transes e recitando o futuro Alcorão. Os versos mais belicosos do livro sagrado são justamente dessa época. O mais conhecido é a Surata 9:5, que diz: “Matem os idólatras, onde quer que eles estejam; capturem, acossem, embosquem”. O contexto real deste texto é o da guerra contra os Quraysh, que infiltravam espiões em Medina. “Idólatra” (“politeísta” ou “infiel”, dependendo da tradução) não é qualquer um que não seja muçulmano. A palavra está ali para representar um inimigo específico, e de um conflito que aconteceu há quase 1.500 anos.
E isso não significa que o Islã tenha mais apreço pela violência que outras religiões. Algumas partes do Antigo Testamento parecem ter sido escritas por Quentin Tarantino, dada a torrente de sangue. E o próprio Cristo, que aconselhava dar a outra face em caso de agressão, chegou a dizer: “Não pensem que vim trazer paz ao mundo. Não vim traz paz, mas a espada.” (Mateus 10:34). Isso não significa que o cristianismo pregue a violência. No caso do Islã, vale o mesmo raciocínio.
Seu primeiro ato foi libertar todos os escravos de Meca. O segundo, despejar os deuses da Caaba, destruindo as imagens deles e consagrando o santuário a Allah — a Pedra Negra ficou, para a alegria de quem gosta de meteoritos. Maomé também poupou as estátuas de Jesus e da Virgem Maria, os únicos personagens do Alcorão representados por imagens dentro da Caaba. Mas Maomé não se aproveitou do poder. Não coroou-se “rei de Meca”, nem nada. Voltou para Medina, que tinha se tornado sua cidade de fato, e morreu em paz, aos 62 anos, deixando 12 viúvas, 3 filhos, 4 filhas e uma nação.
“Ó, Profeta, combata aqueles que negam a verdade e os hipócritas e seja implacável com eles. O inferno será sua morada." (Alcorão 9:42)
Os sucessores do Profeta não pararam em Meca. Eles continuaram a expansão da Ummah e, 50 anos depois da morte de Maomé, seus domínios estendiam-se até o Irã. Mais 50 anos e o norte da África e um pedaço da Índia já era deles. Outros 50 anos, e eles já dominavam a Espanha, uma terra tão distante, que quando era meio-dia nessa ponta ocidental do império, o Sol já estava se pondo nos domínios mais orientais.
Mas esse não foi só um dos maiores impérios do mundo, mas um dos mais criativos também: enquanto a Europa se afundava na escuridão da Idade Média, o Islã ia construindo sua própria “Europa”, alguns graus de latitude mais abaixo, um continente unificado por uma religião, e que deixou como maior legado a ciência: boa parte da matemática que conhecemos hoje veio de gênios que nasceram sob a religião de Maomé, uma religião que, ao propor uma sociedade menos desigual e mais aberta ao diálogo, encarnou muito do que a humanidade tem de melhor. Que meia dúzias de psicopatas não acabem com esse legado.
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